quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Tenho orgulho de ser cadeirante?

 






“Pois o homem é feito de banalidade, e nomeia o hábito a sua ama.”

FRIEDRICH SCHILLER



Amauri Nolasco Sanches Júnior 



Eu vi uma imagem com a frase: “orgulho de ser cadeirante” e fiquei refletindo sobre a banalização da inclusão de pessoas com deficiência. Mas, primeiramente, vamos refletir sobre o orgulho, que é uma coisa que podemos escolher. Podemos ter orgulho de sermos quem somos ou aquilo que conquistamos – no meu caso, bacharel em filosofia – mas não podemos ser orgulhosos daquilo que não escolhemos em ser. Algumas doutrinas espiritualistas – como o budismo e o espiritismo – diz que escolhemos condições para enfrentar e evoluir espiritualmente, aprender com as dificuldades. Se for assim, poderíamos escolher algo melhor como ser cadeirante para aprender o que aprendi? Se for assim e se for verdade, o orgulho é valido, se não é verdade, então, não podemos ter orgulho daquilo que não sabemos se escolhemos ou não. mesmo assim, tem a ver com as escolhas que fazemos. 

Mas, como ter orgulho daquilo – aparentemente – não escolhemos? Como fazer as pessoas aceitarem a deficiência sem ser orgulhoso? Talvez, dentro de cada um e seus valores, poderíamos olhar a deficiência como uma condição e não aquilo que somos. Não somos a nossa deficiência. Como eu disse no meu livro – Tratado sobre o Capacitismo (2016) – a questão de sermos deficientes depende do que se entende como imagem de uma pessoa que tem deficiência. Assim, começo meu livro dizendo que não se nasce com deficiência, mas a imagem da deficiência vai sendo construída ao longo do processo social de construção de valores. Isso gera o fenômeno do capacitismo. Por quê? Todo preconceito e discriminação, vem do fato de conceitos que estão na sociedade mundial a muito tempo e com o tempo, foi se tornando uma coisa muito “normal”.  O capacitismo tem uma característica interessante, ao contrário de outras discriminações, ela começa com um processo de piedade. Porque, biologicamente, somos seres indefesos e que precisamos de defesa. Acontece, que no princípio da humanidade – assim como outros animais – éramos largados no caminho porque não éramos vantagem nem para o clã e nem para a natureza. Com a modernidade – mais ou menos, no fim da era medieval – que novas tecnologias estavam chegando. Mesmo assim, só em meados do fim do século 20, que ganhamos status de pessoas. E olhe lá. 

Mas, como é o processo de se ver o normal e o anormal dentro de uma sociedade? Será que isso tem a ver com nossa biologia? Platão diria que não existe a maldade e sim, existia a ignorância. Seu aluno, Aristóteles, dizia que o ser humano tinha o desejo de saber. Isso porque, somos animais conscientes e podemos distinguir um objeto do outro. A meu ver, sem esse aprendizado e sem essa vontade de saber, somos levados mais ao instinto e tem uma outra coisa. Pesquisas mostram que o ser humano não toma sua decisão só por causa da sua racionalidade, mas ele toma sua decisão por causa do afeto daquilo, pois, você tem que sentir empatia por causa daquilo. Não temos vontade só por causa da racionalidade, temos vontade porque sentimos afeto. Por isso mesmo, esse objetificação das pessoas e não se apegar a objetos ou pessoas, tem um lado perigoso de criarmos gerações de apáticos e antissociais. 

Acessibilizar uma cidade ou um bairro, tem a ver com a empatia que você sente por pessoas com deficiência. O capacitismo, num modo geral, tem um lado biológico (que o ser humano rejeita o diferente ao ponto de sentir asco) e ao mesmo tempo, temos uma imagem social que sente piedade. Ai que o bicho pega, porque para a sociedade deveríamos estar em nossas casas e não “atrapalhar”. As pessoas com deficiência são sofredoras – lembra da biologia? – porque não podem exercer sua liberdade. Aí podemos até analisar o que seria liberdade? Poderíamos dizer, como a maioria “acha”, que liberdade é fazer o que quiser. Mas, será que fazemos o que queremos? Será que não somos condicionados em acreditar nisso? Se fazemos o que queremos, então, temos a liberdade do suicídio e se matar. Camus disse que, existe um problema de verdade dentro da filosofia que é o suicídio. Ali o individuo avalia se sua vida vale a pena ou não, mas, existe uma consequência, de fazemos uma escolha errada. Daí o nome do livro que ele fala isso: O Mito de Sísifo. 

Sísifo era um rei bastante poderoso, mas, ele queria ser comparado como um deus e Zeus não gostou nada disso. Resumindo bastante a história, Zeus e todos os outros deuses, condenaram Sísifo a carregar a pedra até o cume da montanha e depois ele assiste a pedra rolar até lá embaixo de novo. E Camus, faz uma reflexão dizendo – daí cabe a condição de cadeirante – que, talvez, Sísifo amenizou a questão pondo uma certa conformidade dentro daquilo tudo. Ele vivia em paz, porque viu que ele não se conformando, a tarefa era mais árdua e difícil. Então, talvez, “ser um cadeirante” é ser como Sísifo em carregar a pedra até o alto da montanha, mas que ela não para lá no cume da montanha. Ou seja, a deficiência é uma realidade. Mas, podemos nos perguntar: Sísifo tinha orgulho de carregar eternamente a pedra? Não, ele tinha orgulho de ser rei. 

Qual o critério de ter mérito ou demérito dentro de “ser cadeirante”? Mérito é aquilo – que muitos dizem – se conquista e não se conquista “ser cadeirante”, se é. Aliás, esse “ser” é muito estranho, porque somos cadeirantes como condição, mas “ser um” é uma condição inata. Não é. A cadeira de rodas é um objeto do uso, mas não é o que somos, é um instrumento virtual (no sentido de ser um potencial instrumento de locomoção). Ter orgulho de usar um instrumento – como essencial para a locomoção – não faz sentido. Eu, por exemplo, posso ter orgulho de estar fazendo bacharelado de filosofia, mas é uma escolha estudar filosofia e poder ostentar isso aos outros. O “ser cadeirante” é, talvez, uma condição que nos acostumamos e fazemos dela (como adaptação) algo para ser feliz. Não amo minha deficiência, eu apenas, faço dela um aprendizado todo dia. É um instrumento como a cadeira de rodas. 




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