“Havia a civilização ateniense, houve o Renascimento,
agora entramos na civilização da bunda.”
Pierrot le fou
Amauri
Nolasco Sanches Júnior
Desde que foi cunhado o termo “indústria cultural” – por
Theodor Adorno e Max Horkheimer – sempre os intelectuais criticam o cinema
popular como se o entretenimento fosse algo alienante, que por um lado não esta
errado totalmente, porém, não podemos radicalizar a questão. Se por um lado, ao
longo da história humana, a arte foi algo como comunicar um sentimento que
esteja no artista, também foi usado como meio político para doutrinar certas
ideias. Principalmente, depois da segunda guerra mundial com o aprendizado das
táticas nazifascistas que colocaram o cinema como um meio para mostrar que o
capitalismo era a liberdade que a humanidade desprezava, assim como, o cinema
soviético (sim, se teve um cinema soviético) dizia que o povo tinha que saber
da “verdade”. A questão é muito mais profunda.
A questão pode ser levada até dos primórdios das tragedias
gregas onde os autores eram consagrados por levar ao público à estase. Mas,
talvez, os grandes intelectuais modernos ou pós-modernos, podem ter em mente
figuras como Homero (Ilíada/Odisseia) e Hesíodo (trabalho dos dias). O que
podemos duvidar se uma obra artística tenha uma “obrigação” educadora de
mostrar valores sendo isso uma “obrigação” familiar de fato. A cultura pop –
poderemos dizer assim – foi uma cultura não só voltadas para só o
entretenimento, pois, a meu ver (e lendo o texto famoso de Adorno em torno do
jazz), essa é uma visão bastante conservadora e não menos, reacionária, como um
filme ou um artista (diretores ou roteiristas) devem se portar em roteirizar e
passar a mensagem do filme. Desde a Família Adams (com o estereotipo da
Wandinha) até filmes mais cults (não menos chatos), como Melancolia, tendem a
passar a mensagem que se queira sem ficar presos em certas “obrigações”
educativas. Por outro lado, não poderemos esquecer, que mesmo com um verniz de
ser só um filme sem história ou sem atitude educativa, a mensagem filosófica
aparece e, por incrível que possa parecer, ela aparece. Até mesmo em filmes
como Rambo (que poderemos analisar em um outro momento).
Nesse interim – sendo a arte algo muito mais real – poderemos
fazer uma análise bastante criteriosa do recente filme da Barbie (a boneca
famosa da Mattel) onde podemos ver uma crítica acida os milhares de
estereótipos que fizeram ela famosa. A grande maioria, não entendeu, pois, para
entender tais críticas deveremos ter uma leitura da filosofia estética (como o
confronto daquilo que é ou não normal) e aquilo que chamamos de filosofia da
linguagem como discurso dominante. As partes do filme e sua estética – como uma
fotografia feita para construir a história como um todo (que foi chamado de
narrativa) – contém vários indicativos de uma mensagem a mais dentro de uma história
que se faz um “apoderamento”. Em uma primeira análise temos uma certa “tentação”
de colocar o filme em um patamar antifeminista – como muitos da esquerda
colocaram de verdade – mas, conforme a história vai se desenvolvendo, as coisas
não são assim. Pois, ela começa a desconstruir uma “Barbie” tradicional, ela
(Margot Robbie) é a “Barbie estereotipada”, ou seja, a imagem primeira que fez
a boneca ser o que é até hoje.
A humanização do personagem começa com o “pensar da morte”.
A questão é: o que nos torna humanos? Em uma primeira análise poderemos
responder que temos a capacidade de pensar, e o pensamento como modo de “saber”
tem uma conotação filosófica. Na modernidade – assim como na antiguidade
teremos Aristóteles dizendo que o homem (ser humano) tem “sede” de saber –
teremos o pensar na figura de Descartes na sua celebre frase: “penso, logo
sou”. A única certeza que temos é o nosso pensar e com isso, sabemos que somos
um ser no mundo. Barbie não sabia disso, ela existia porque foi feita para
estereotipar certa imagem da mulher e agradar certas narrativas do mundo. Mas,
em que mundo? O mundo dos homens ou o mundo da Barbielândia? Ai que está a
fronteira daquilo que é (o mundo humano) e aquilo que imaginamos (a
Barbielândia). Como se houvesse – sem medo de errar na análise – o mundo
imperfeito e perfeito platônico (que colocamos como um mundo idealizado).
Paul Ricoeur dizia que Platão pegou do senso comum o termo “eidos”
para se valer do seu significado, que em um primeiro momento, significou
contorno e foi se modificando para formas (como contorno e conjuntura do que está
dentro das formas). Platão – segundo Ricoeur – queria explicar a essência das
coisas (como Parmênides) e como a questão da essência nasce de uma pergunta
muito particular: “o que é aquilo?”. Como “o que é a coragem?” ou “o que é a
virtude?”. O que estaria em questão em uma pergunta como esta? Segundo Ricoeur,
essas perguntas surgem com sua virulência interrogativa para um interlocutor –
iria mais longe de Ricoeur e diria que não precisaria de um interlocutor – que
houver entrado pessoalmente numa espécie particular de mal-estar. Porém, não é
um mal-estar vital – que sentimos quando não estamos bem – mas, um mal-estar do
conhecimento.
Quando voltamos a Barbie e a pergunta <vocês já pensaram
na morte?> é um mal-estar do pensamento – fugindo de um mundo virtualizado em
um simulacro idealizado – quando não mais uma realidade se sustenta dentro de
uma ideia de realidade. Talvez, o mundo idealizado da Barbie – em uma época –
foi idealizado pelo sonho de uma mulher “estereotipada”. Como diriam tempos
atrás – com a primeira-dama Temer – “recatada e do lar” (não tendo nem uma
sexualidade) e ao mesmo tempo, empoderada. Mesmo assim, a figura da Mattel como
idealizadora dessa imagem – como a imagem do capital e da fazedora de sonhos
dentro de uma imagem “estereotipada”, como o nome dela – também tem o papel de
ser uma fronteira e idealizadora da imagem platônica. Aliás, esse repertorio
todo é platônico e ao mudar de idealizada boneca para humana, ela se torna ao contrário
do platonismo.
Voltando ao pensamento de Ricoeur, a questão dos “eidos” (ou
“idea”) tem a ver da questão do não ser de Parmênides que Platão não
concordava. Dai, “eidos” passou a ser não só um contorno – como nos primórdios
foi dito – mas, as formas tanto internas como externas. Ora, a oposição
epistemológica ser-aparecer e a oposição física ser-devir coincidem já no
inicio, porque podem coincidirem na linguagem. Segundo Ricoeur, o aparecer das
palavras é o devir da linguagem, pois, dizer “as coisas são o que aparecem para
mim” e “as coisas são fluentes” é a mesma coisa. Platão sempre conduziu um só e
único processo contra Protágoras e Heráclito. E é o “legislador bêbado”
(Ricoeur chama a linguagem de Platão como “um legislador bêbado”) que faz
coincidir “o homem é a medida de todas as coisas” e o “tudo flui”, é que dará
ao ser humano uma falsa medida para a aparecia do ser, porque ele próprio é
berrante e aberrante. É por isso mesmo, em compensação, a essência dependera da
unidade e da identidade com relação a Heráclito, a essência introduz uma trava
de segurança, impedem que as coisas se dissolvam. Ai vem a parte interessante
disso (que Ricoeur desenvolve), que "O heraclitismo é para Platão a
filosofia do "nariz escorrendo", do catarro (440 d) uma filosofia
ranhosa”; e que, as coisas escapam da mudança porque tem uma determinação
distinta.
Ou seja, Platão (segundo Ricoeur) tem em mente não criar um
mundo a parte, mas, se opor ao subjetivismo de Protágoras (e porque não,
Heráclito) e determinar o conceito de realidade e o conceito de verdade. A
verdade ultima seria uma verdade única, uma verdade que não muda. Uma
Barbielândia será um ideal de perfeição por não tem uma outra verdade, ai, a
menina que brincava com a Barbie Estereotipada fez ela pensar na morte e ter
celulite. Já não se estar em um mundo idealizado, mas, o mundo realizado dentro
do que é verdadeiro. A ligação da boneca e sua dona (no caso do filme, a mãe
dela) faz ter uma ligação restrita – como acontece com a Barbie Estranha – e
que mais adiante, se muda o mundo ideal com o mundo real. Na essência, a imagem
da Barbielândia é a imagem de um mundo fantasioso, um mundo de mentira. Ai
poderemos até mesmo, dar razão a Platão da filosofia do “nariz escorrendo” de
Heráclito, pois, o nariz escorrendo elimina o que esta no nariz. Mas, o que está
sendo eliminado é o que faz mal no resfriado ou na gripe, aquilo que não tem
mais de ficar no corpo.
No filme – no desenvolvimento da história – há uma ligação
do mundo real (a dona da boneca) e o ideal (Barbie e a Barbielândia). Ou seja,
há como entrar nesse mundo ideal e sair dele. Com veículos estimados pelo
materialismo e que todo mundo sonha – na essência, materialistas são aqueles
que acreditam na matéria só e usufruem dela literalmente – colocando um estereotipo
do sonho capitalista liberal que chega ate a Barbielândia. Aliás, o mundo
igualitário feminino da Barbielândia – onde a imagem de Barbies de vários tipos
(tendo o mesmo nome) e o Ken só viver em torno dela – nos faz perceber também
uma crítica acida ao feminismo. Mas, adiante no final, a igualdade entre os
sexos e o discurso da Barbie Estereotipada nos remete ao existencialismo. E há
três características (ou mais) que nos remete a ele: o feminismo
existencialista (Simone de Beauvoir), o absurdo (Albert Camus), o
existencialismo de Sartre.
O existencialismo da Barbie
O primeiro indício do existencialismo no filme é a questão da
Barbie perguntar “vocês já pensaram na morte?”. Camus em sua obra “O Mito de
Sisifo”, diz ao abrir a obra: “Só existe um problema filosófico realmente serio:
o suicídio”. Por quê? Realmente, se fomos bastante rigorosos, a filosofia começa
com um suicídio. A morte de um filosofo. Camus retrata dentro dessa frase, a questão
de Sócrates e sua morte quase ou sendo, um suicídio pela ética das leis e pelo não
medo da morte. Mas, em essência, Camus projeta a frase de Sócrates em sua
dizendo: “julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder a
pergunta fundamental da filosofia”. Mas que pergunta seria essa que Camus quis
responder?
Esse “pensaram na morte” foi escrito pela mãe da dona da Barbie
que estava tendo ideias (lembramos de Platão e seu eidos) de “humanizar” a
boneca. A Barbielândia é o Mundo das Ideias, todas tem o mesmo nome (Barbie) e
fazem o que foram feitas para fazer (essência), a Barbie Estereotipada (mulher
perfeita). Simone de Beauvoir diz que não se nasce mulher, torna-se. Claro,
sabemos que essa frase não é sobre gênero – como feminino e masculino – mas, um
estereotipo como as mulheres deveriam ser. Ora, mesmo a Barbielândia sendo
governada por mulheres, elas deveriam ser o que foram feitas para ser. Por
outro lado, tem um outro problema, mesmo os Kens (digamos), tendem a serem um padrão
e mesmo eles dominando, obedeciam a um padrão. Um liberal fundamentalista tenderia
– se ele tivesse, realmente, coragem de assistir o filme – a ver nisso algo de
comunismo e não e não é bem assim, essa critica ao capitalismo norte-americano não
é ideológico. Eu, por exemplo, mesmo sendo um libertário, tendo a ter criticas
ao capitalismo que esta ai hoje.
Dai a Barbie começa a questionar o mundo perfeito – que foi
a imagem dos anos 50 norte-americana depois da guerra – onde só existe a
felicidade e não tem problemas, para um mundo humano. Finito. Tendencioso a ter
imperfeições e maldade (ignorância), e nisso entra a Barbie Estranha que tende
a ser diferente. Sócrates e a maioria dos filósofos ate hoje, tende a ter sua
imagem a estranheza. Mesmo os pré-socráticos. E uma pergunta nos vem a mente: será
que a Barbie Estranha é uma filosofa? Ela vai muito além do que todo mundo é?
Chega-nos Sartre. Sartre dizia que somos condenados a ser
livres. Mas, essa condenação tem a ver com o NADA. Entendemos a questão: o conceito
do NADA na filosofia pode ser considerada como uma questão complexa e que é
amplamente debatida na história da filosofia. Mesmo o porquê, com dois mil anos
de história, a filosofia abordou várias perspectivas filosóficas para entender
o conceito do nada.
1- Nada como ausência de ser: Alguns filósofos consideram o
nada como a ausência completa de existência ou ser. Nessa visão, o nada é a
ausência total de qualquer coisa, seja física, mental ou espiritual. É uma
noção de vazio absoluto e inexistência.
2- Nada como potencialidade: Outra perspectiva filosófica
considera o nada como uma condição de potencialidade. Nesse sentido, o nada é
visto como um estado a partir do qual algo pode surgir ou ser criado. É o vazio
que permite a manifestação do ser e das possibilidades.
3- Nada como conceito abstrato: Alguns filósofos argumentam
que o nada é um conceito abstrato criado pela mente humana para contrastar com
a existência. Nessa visão, o nada não tem uma realidade objetiva, mas é uma
ideia que utilizamos para expressar a ausência de algo.
4- Nada como limite do conhecimento humano: Para certos
filósofos, o nada pode ser entendido como um limite do conhecimento humano. É
algo que escapa à nossa compreensão e está além da nossa capacidade de
conceber. O nada pode ser considerado como uma fronteira do nosso entendimento.
Para entrarmos no NADA em Sartre temos que devagar um pouco
da pergunta da Barbie “vocês já pensaram na morte?”. Esse “pensaram na morte”
tem uma ideia finita da vida e examinar a vida, afinal, Freud dizia que tudo
que o ser humano faz é por causa do medo da morte. O impulso da morte. Esse examinar
a vida é socrático – que Camus usou para se referir ao absurdo da vida – e tem
a ver com o exame para ver se ela vale a pena ser vivida. Mas no ultimo
discurso dela para o Ken, ela diz que ele tinha que se desprender dela e
construir sua própria personalidade. A dependência do outro gera um mal como acreditar
em partidos, ser fanático (de todo tipo), e etc. Ou seja, cada um tem sua
personalidade única.
Personalidades como as Barbies, o “pensar na morte” significa
o nada dentro da ruptura daquilo que elas vivem. No existencialismo de Sartre o
conceito do NADA desenvolve um papel muito grande dentro de sua filosofia,
pois, ele considera o NADA não apenas em uma ausência ou um vazio, mas como uma
dimensão fundamental da existência humana. Assim sedo, o NADA esta ligado a liberdade
e a responsabilidade individual. A argumentação é muito simples, os seres
humanos são essencialmente livres e que essa liberdade se manifesta na capacidade
de escolher e tomar certas decisões (ou todas). Por outro lado, essa mesma
liberdade também traz consigo a angústia e a responsabilidade de criar significado
e proposito em um mundo aparentemente sem nenhum sentido.
O NADA sartriano esta presente em nossa consciência,
especialmente, quando confrontamos ela a uma falta de proposito. Exatamente,
quando a Barbie Estereotipada acorda e se questiona – começa o pé ficar reto
(sem o modo salto) e ter estria – ela começa a entrar nesse NADA de Sartre. Pois,
ele enfatiza que não há um significado objetivo ou essência em nós, e com isso,
somos responsáveis por criar nosso próprio significado através das escolhas que
fazemos. O NADA não é algo a ser temido, mas sim algo que nos desafia a assumir
a responsabilidade por nossas vidas e a enfrentar a liberdade de escolha de
forma autêntica. E é através desse confronto com o NADA que somos impulsionados
a agir e a criar sentido em nossas vidas, mesmo em um mundo sem significado
objetivo.
No final, no mundo humano, ela foi no ginecologista. Parece que
a Barbie Estereotipada promoveu a igualdade na Barbielândia, e acima de tudo,
deu um significado para a sua vida. Escolheu ser humana.
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