terça-feira, 17 de outubro de 2023

O existencialismo da Barbie

 










“Havia a civilização ateniense, houve o Renascimento,
agora entramos na civilização da bunda.”
Pierrot le fou

 

Amauri Nolasco Sanches Júnior

 

Desde que foi cunhado o termo “indústria cultural” – por Theodor Adorno e Max Horkheimer – sempre os intelectuais criticam o cinema popular como se o entretenimento fosse algo alienante, que por um lado não esta errado totalmente, porém, não podemos radicalizar a questão. Se por um lado, ao longo da história humana, a arte foi algo como comunicar um sentimento que esteja no artista, também foi usado como meio político para doutrinar certas ideias. Principalmente, depois da segunda guerra mundial com o aprendizado das táticas nazifascistas que colocaram o cinema como um meio para mostrar que o capitalismo era a liberdade que a humanidade desprezava, assim como, o cinema soviético (sim, se teve um cinema soviético) dizia que o povo tinha que saber da “verdade”. A questão é muito mais profunda.

A questão pode ser levada até dos primórdios das tragedias gregas onde os autores eram consagrados por levar ao público à estase. Mas, talvez, os grandes intelectuais modernos ou pós-modernos, podem ter em mente figuras como Homero (Ilíada/Odisseia) e Hesíodo (trabalho dos dias). O que podemos duvidar se uma obra artística tenha uma “obrigação” educadora de mostrar valores sendo isso uma “obrigação” familiar de fato. A cultura pop – poderemos dizer assim – foi uma cultura não só voltadas para só o entretenimento, pois, a meu ver (e lendo o texto famoso de Adorno em torno do jazz), essa é uma visão bastante conservadora e não menos, reacionária, como um filme ou um artista (diretores ou roteiristas) devem se portar em roteirizar e passar a mensagem do filme. Desde a Família Adams (com o estereotipo da Wandinha) até filmes mais cults (não menos chatos), como Melancolia, tendem a passar a mensagem que se queira sem ficar presos em certas “obrigações” educativas. Por outro lado, não poderemos esquecer, que mesmo com um verniz de ser só um filme sem história ou sem atitude educativa, a mensagem filosófica aparece e, por incrível que possa parecer, ela aparece. Até mesmo em filmes como Rambo (que poderemos analisar em um outro momento).

Nesse interim – sendo a arte algo muito mais real – poderemos fazer uma análise bastante criteriosa do recente filme da Barbie (a boneca famosa da Mattel) onde podemos ver uma crítica acida os milhares de estereótipos que fizeram ela famosa. A grande maioria, não entendeu, pois, para entender tais críticas deveremos ter uma leitura da filosofia estética (como o confronto daquilo que é ou não normal) e aquilo que chamamos de filosofia da linguagem como discurso dominante. As partes do filme e sua estética – como uma fotografia feita para construir a história como um todo (que foi chamado de narrativa) – contém vários indicativos de uma mensagem a mais dentro de uma história que se faz um “apoderamento”. Em uma primeira análise temos uma certa “tentação” de colocar o filme em um patamar antifeminista – como muitos da esquerda colocaram de verdade – mas, conforme a história vai se desenvolvendo, as coisas não são assim. Pois, ela começa a desconstruir uma “Barbie” tradicional, ela (Margot Robbie) é a “Barbie estereotipada”, ou seja, a imagem primeira que fez a boneca ser o que é até hoje.

A humanização do personagem começa com o “pensar da morte”. A questão é: o que nos torna humanos? Em uma primeira análise poderemos responder que temos a capacidade de pensar, e o pensamento como modo de “saber” tem uma conotação filosófica. Na modernidade – assim como na antiguidade teremos Aristóteles dizendo que o homem (ser humano) tem “sede” de saber – teremos o pensar na figura de Descartes na sua celebre frase: “penso, logo sou”. A única certeza que temos é o nosso pensar e com isso, sabemos que somos um ser no mundo. Barbie não sabia disso, ela existia porque foi feita para estereotipar certa imagem da mulher e agradar certas narrativas do mundo. Mas, em que mundo? O mundo dos homens ou o mundo da Barbielândia? Ai que está a fronteira daquilo que é (o mundo humano) e aquilo que imaginamos (a Barbielândia). Como se houvesse – sem medo de errar na análise – o mundo imperfeito e perfeito platônico (que colocamos como um mundo idealizado).

Paul Ricoeur dizia que Platão pegou do senso comum o termo “eidos” para se valer do seu significado, que em um primeiro momento, significou contorno e foi se modificando para formas (como contorno e conjuntura do que está dentro das formas). Platão – segundo Ricoeur – queria explicar a essência das coisas (como Parmênides) e como a questão da essência nasce de uma pergunta muito particular: “o que é aquilo?”. Como “o que é a coragem?” ou “o que é a virtude?”. O que estaria em questão em uma pergunta como esta? Segundo Ricoeur, essas perguntas surgem com sua virulência interrogativa para um interlocutor – iria mais longe de Ricoeur e diria que não precisaria de um interlocutor – que houver entrado pessoalmente numa espécie particular de mal-estar. Porém, não é um mal-estar vital – que sentimos quando não estamos bem – mas, um mal-estar do conhecimento.

Quando voltamos a Barbie e a pergunta <vocês já pensaram na morte?> é um mal-estar do pensamento – fugindo de um mundo virtualizado em um simulacro idealizado – quando não mais uma realidade se sustenta dentro de uma ideia de realidade. Talvez, o mundo idealizado da Barbie – em uma época – foi idealizado pelo sonho de uma mulher “estereotipada”. Como diriam tempos atrás – com a primeira-dama Temer – “recatada e do lar” (não tendo nem uma sexualidade) e ao mesmo tempo, empoderada. Mesmo assim, a figura da Mattel como idealizadora dessa imagem – como a imagem do capital e da fazedora de sonhos dentro de uma imagem “estereotipada”, como o nome dela – também tem o papel de ser uma fronteira e idealizadora da imagem platônica. Aliás, esse repertorio todo é platônico e ao mudar de idealizada boneca para humana, ela se torna ao contrário do platonismo.

Voltando ao pensamento de Ricoeur, a questão dos “eidos” (ou “idea”) tem a ver da questão do não ser de Parmênides que Platão não concordava. Dai, “eidos” passou a ser não só um contorno – como nos primórdios foi dito – mas, as formas tanto internas como externas. Ora, a oposição epistemológica ser-aparecer e a oposição física ser-devir coincidem já no inicio, porque podem coincidirem na linguagem. Segundo Ricoeur, o aparecer das palavras é o devir da linguagem, pois, dizer “as coisas são o que aparecem para mim” e “as coisas são fluentes” é a mesma coisa. Platão sempre conduziu um só e único processo contra Protágoras e Heráclito. E é o “legislador bêbado” (Ricoeur chama a linguagem de Platão como “um legislador bêbado”) que faz coincidir “o homem é a medida de todas as coisas” e o “tudo flui”, é que dará ao ser humano uma falsa medida para a aparecia do ser, porque ele próprio é berrante e aberrante. É por isso mesmo, em compensação, a essência dependera da unidade e da identidade com relação a Heráclito, a essência introduz uma trava de segurança, impedem que as coisas se dissolvam. Ai vem a parte interessante disso (que Ricoeur desenvolve), que "O heraclitismo é para Platão a filosofia do "nariz escorrendo", do catarro (440 d) uma filosofia ranhosa”; e que, as coisas escapam da mudança porque tem uma determinação distinta.

Ou seja, Platão (segundo Ricoeur) tem em mente não criar um mundo a parte, mas, se opor ao subjetivismo de Protágoras (e porque não, Heráclito) e determinar o conceito de realidade e o conceito de verdade. A verdade ultima seria uma verdade única, uma verdade que não muda. Uma Barbielândia será um ideal de perfeição por não tem uma outra verdade, ai, a menina que brincava com a Barbie Estereotipada fez ela pensar na morte e ter celulite. Já não se estar em um mundo idealizado, mas, o mundo realizado dentro do que é verdadeiro. A ligação da boneca e sua dona (no caso do filme, a mãe dela) faz ter uma ligação restrita – como acontece com a Barbie Estranha – e que mais adiante, se muda o mundo ideal com o mundo real. Na essência, a imagem da Barbielândia é a imagem de um mundo fantasioso, um mundo de mentira. Ai poderemos até mesmo, dar razão a Platão da filosofia do “nariz escorrendo” de Heráclito, pois, o nariz escorrendo elimina o que esta no nariz. Mas, o que está sendo eliminado é o que faz mal no resfriado ou na gripe, aquilo que não tem mais de ficar no corpo.

No filme – no desenvolvimento da história – há uma ligação do mundo real (a dona da boneca) e o ideal (Barbie e a Barbielândia). Ou seja, há como entrar nesse mundo ideal e sair dele. Com veículos estimados pelo materialismo e que todo mundo sonha – na essência, materialistas são aqueles que acreditam na matéria só e usufruem dela literalmente – colocando um estereotipo do sonho capitalista liberal que chega ate a Barbielândia. Aliás, o mundo igualitário feminino da Barbielândia – onde a imagem de Barbies de vários tipos (tendo o mesmo nome) e o Ken só viver em torno dela – nos faz perceber também uma crítica acida ao feminismo. Mas, adiante no final, a igualdade entre os sexos e o discurso da Barbie Estereotipada nos remete ao existencialismo. E há três características (ou mais) que nos remete a ele: o feminismo existencialista (Simone de Beauvoir), o absurdo (Albert Camus), o existencialismo de Sartre. 

 

O existencialismo da Barbie

 

 

O primeiro indício do existencialismo no filme é a questão da Barbie perguntar “vocês já pensaram na morte?”. Camus em sua obra “O Mito de Sisifo”, diz ao abrir a obra: “Só existe um problema filosófico realmente serio: o suicídio”. Por quê? Realmente, se fomos bastante rigorosos, a filosofia começa com um suicídio. A morte de um filosofo. Camus retrata dentro dessa frase, a questão de Sócrates e sua morte quase ou sendo, um suicídio pela ética das leis e pelo não medo da morte. Mas, em essência, Camus projeta a frase de Sócrates em sua dizendo: “julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder a pergunta fundamental da filosofia”. Mas que pergunta seria essa que Camus quis responder?

Esse “pensaram na morte” foi escrito pela mãe da dona da Barbie que estava tendo ideias (lembramos de Platão e seu eidos) de “humanizar” a boneca. A Barbielândia é o Mundo das Ideias, todas tem o mesmo nome (Barbie) e fazem o que foram feitas para fazer (essência), a Barbie Estereotipada (mulher perfeita). Simone de Beauvoir diz que não se nasce mulher, torna-se. Claro, sabemos que essa frase não é sobre gênero – como feminino e masculino – mas, um estereotipo como as mulheres deveriam ser. Ora, mesmo a Barbielândia sendo governada por mulheres, elas deveriam ser o que foram feitas para ser. Por outro lado, tem um outro problema, mesmo os Kens (digamos), tendem a serem um padrão e mesmo eles dominando, obedeciam a um padrão. Um liberal fundamentalista tenderia – se ele tivesse, realmente, coragem de assistir o filme – a ver nisso algo de comunismo e não e não é bem assim, essa critica ao capitalismo norte-americano não é ideológico. Eu, por exemplo, mesmo sendo um libertário, tendo a ter criticas ao capitalismo que esta ai hoje.

Dai a Barbie começa a questionar o mundo perfeito – que foi a imagem dos anos 50 norte-americana depois da guerra – onde só existe a felicidade e não tem problemas, para um mundo humano. Finito. Tendencioso a ter imperfeições e maldade (ignorância), e nisso entra a Barbie Estranha que tende a ser diferente. Sócrates e a maioria dos filósofos ate hoje, tende a ter sua imagem a estranheza. Mesmo os pré-socráticos. E uma pergunta nos vem a mente: será que a Barbie Estranha é uma filosofa? Ela vai muito além do que todo mundo é?

Chega-nos Sartre. Sartre dizia que somos condenados a ser livres. Mas, essa condenação tem a ver com o NADA. Entendemos a questão: o conceito do NADA na filosofia pode ser considerada como uma questão complexa e que é amplamente debatida na história da filosofia. Mesmo o porquê, com dois mil anos de história, a filosofia abordou várias perspectivas filosóficas para entender o conceito do nada.

 

1- Nada como ausência de ser: Alguns filósofos consideram o nada como a ausência completa de existência ou ser. Nessa visão, o nada é a ausência total de qualquer coisa, seja física, mental ou espiritual. É uma noção de vazio absoluto e inexistência.

2- Nada como potencialidade: Outra perspectiva filosófica considera o nada como uma condição de potencialidade. Nesse sentido, o nada é visto como um estado a partir do qual algo pode surgir ou ser criado. É o vazio que permite a manifestação do ser e das possibilidades.

3- Nada como conceito abstrato: Alguns filósofos argumentam que o nada é um conceito abstrato criado pela mente humana para contrastar com a existência. Nessa visão, o nada não tem uma realidade objetiva, mas é uma ideia que utilizamos para expressar a ausência de algo.

4- Nada como limite do conhecimento humano: Para certos filósofos, o nada pode ser entendido como um limite do conhecimento humano. É algo que escapa à nossa compreensão e está além da nossa capacidade de conceber. O nada pode ser considerado como uma fronteira do nosso entendimento.

 

Para entrarmos no NADA em Sartre temos que devagar um pouco da pergunta da Barbie “vocês já pensaram na morte?”. Esse “pensaram na morte” tem uma ideia finita da vida e examinar a vida, afinal, Freud dizia que tudo que o ser humano faz é por causa do medo da morte. O impulso da morte. Esse examinar a vida é socrático – que Camus usou para se referir ao absurdo da vida – e tem a ver com o exame para ver se ela vale a pena ser vivida. Mas no ultimo discurso dela para o Ken, ela diz que ele tinha que se desprender dela e construir sua própria personalidade. A dependência do outro gera um mal como acreditar em partidos, ser fanático (de todo tipo), e etc. Ou seja, cada um tem sua personalidade única.

Personalidades como as Barbies, o “pensar na morte” significa o nada dentro da ruptura daquilo que elas vivem. No existencialismo de Sartre o conceito do NADA desenvolve um papel muito grande dentro de sua filosofia, pois, ele considera o NADA não apenas em uma ausência ou um vazio, mas como uma dimensão fundamental da existência humana. Assim sedo, o NADA esta ligado a liberdade e a responsabilidade individual. A argumentação é muito simples, os seres humanos são essencialmente livres e que essa liberdade se manifesta na capacidade de escolher e tomar certas decisões (ou todas). Por outro lado, essa mesma liberdade também traz consigo a angústia e a responsabilidade de criar significado e proposito em um mundo aparentemente sem nenhum sentido.

O NADA sartriano esta presente em nossa consciência, especialmente, quando confrontamos ela a uma falta de proposito. Exatamente, quando a Barbie Estereotipada acorda e se questiona – começa o pé ficar reto (sem o modo salto) e ter estria – ela começa a entrar nesse NADA de Sartre. Pois, ele enfatiza que não há um significado objetivo ou essência em nós, e com isso, somos responsáveis por criar nosso próprio significado através das escolhas que fazemos. O NADA não é algo a ser temido, mas sim algo que nos desafia a assumir a responsabilidade por nossas vidas e a enfrentar a liberdade de escolha de forma autêntica. E é através desse confronto com o NADA que somos impulsionados a agir e a criar sentido em nossas vidas, mesmo em um mundo sem significado objetivo.

No final, no mundo humano, ela foi no ginecologista. Parece que a Barbie Estereotipada promoveu a igualdade na Barbielândia, e acima de tudo, deu um significado para a sua vida. Escolheu ser humana.

Quer história mais filosófica?

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