quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Capacitismo e o eterno requiem teletoniano



 Amauri Nolasco Sanches Junior

Eu sempre tive aptidão para pensar muito além do que pensavam, por isso, sempre fui impedido de levar o conhecimento para outras pessoas na Oficina Abrigada de Trabalho (OAT) da AACD. As coisas não eram livres, a Oficina era um “depósito” de pessoas deficientes depois que fizemos 14 anos. Fui expulso da escola por escrever uma carta para os diretores (na verdade, era uma carta de reivindicação de um tratamento que não tínhamos) reivindicando aquilo que era do nosso direito. Se naquela época eu não entendia que esse foi sim, um ato de capacitismo, hoje eu entendi que muitas coisas deveriam ser repensadas e essa sociedade brasileira é atrasada. 

Primeiro, somos uma cultura colonizada por uma nação católica, ainda com a cartilha escolástica dos jesuítas (Companhia de Jesus). Antes da reforma do Marquês de Pombal (chamada de revolução pombalina), Portugal era uma nação feudal que  ainda  mandava cruzadas (Dom Sebastião morreu nesta última). O Brasil teve escolas catequizadas que queriam converter os índios (que não queriam acreditar nesse deus) e quem tinha posses, tinham a opção de transformar seus filhos em padres e muito mais tarde, em advogados. Somos uma nação de padres e advogados e sempre quisemos imitar os outros para puxar o saco e conseguir vantagens. Aliás, como sempre digo, o termo “vantagem” deveria estar na bandeira nacional, pois sempre estará na cultura brasileira como modus operandi. 

As consequências de uma educação tardia (digamos assim), é que nosso povo cultiva hábitos de confundir aquilo que é conceito (formas de pensamento que explicam a realidade) e o preconceito (modo subjetivo de ver o mundo). Ou seja, você achar que um deficiente é doente por causa dda sua deficiência é um preconceito, pois, seu modo de pensar tende muito a ser subjetivo. Porque o conceito de deficiência se refere a uma condição em que uma pessoas tem uma limitação que afeta suas habilidades. Mas, essa deficiência não pode definir a totalidade de uma pessoa, mas é apenas uma característica (particular) que pode afetar suas experiências e necessidades. Como tudo que envolve humanos, a deficiência pode variar em sua natureza e gravidade, sejam elas físicas, sensoriais, intelectual e mental.

Nos anos 50 um médico trouxe - da época - algo revolucionário para os padrões do Brasil: levar a uma suposta reabilitação na imagem de andar, porque o mundo (deslumbrado com a ciência) queria “curar” pessoas com deficiência. Daí entra o preconceito. O corpo na condição de deficiência - limitações de sua autonomia e da sua eficiência - não está na “normalidade” social como um corpo eficiente e produtivo. Indo além de perspectivas ideológicas, estamos em um momento da humanidade que só vale aquilo que serve. Assim, Dr Renato Bonfim (com os conceitos da época) criou a ideia da AACD, um modelo medicalista europeu onde o corpo como uma máquina, tinha que ser consertado e posto como serventia social. Acontece que nossa ciência e nossa medicina usa a cartilha positivista de Comte, pois, a medicina (como outras áreas da ciência) salvará a humanidade das “imperfeições” e colocará a felicidade em nós. Por que só devo ser feliz “perfeito”? Por que as pessoas nos observam como “sofredores”?

Existe a ideia da imperfeição como um sofrimento e todo sofrimento vem da ideia (forma) de um castigo ou de Deus ou dos deuses, ou de fazer algo de um passado ou um parente estar em pecado. Mas, todas as religiosidades sao crenças, a compreensão de um todo já é espiritualidade e quando voce compreende conotações espirituais, vai entender a questão do corpo perfeito mais nitidamente. A questão do corpo deficiente como sofrimento tem a ver com o corpo enquanto substância inerente, a realidade como experiência precisa dele para viver essa realidade. Mas o corpo como um TODO dentro da realidade é uma conexão entre eu (consciência que está pensando e sentido) e o outro (consciência modificadora da realidade). O conceito de deficiência (ou do corpo) não pode ficar restrito apenas em um conceito médico - diria como o modelo cartesiano - onde o corpo seria uma máquina, mas, de um outro ângulo dentro da premissa que o corpo é um TODO. 

Assim, aquilo que “serve” - como um servo obediente medieval que eram pessoas que se submetiam em troca de comida e proteção - tende a ser útil e aí que o corpo “defeituoso” - no primeiro momento, o D da AACD era “defeituosa”, ou seja, “crianças defeituosas” - passa a ser uma espécie de máquina a ser “arrumada”. Essa imagem que a deficiência é um sofrimento - muitos paises da Europa permitem aborto de crianças que tem forte tendencia em ter Sindrome de Down - ainda acomete muitos paises, mesmo que se mostre pessoas deficientes participando de trabalhos da vida cotidiana. A meu ver, o preconceito não pode ou não poderia ser ignorância, pois, o preconceito é a forma errada de ver um indivíduo diferente. Mesmo o porque, muitas mulheres europeias - isso é comprovada em vídeos - por médicos que, ora deveriam preservar a vida segundo o juramento de Hipócrates, ora não são ignorantes e sabem das probabilidades que uma criança pode  ou não desenvolver a síndrome. 

Até mesmo observando a associação em questão - idealizada e construída por médicos não leigos - era estudada, pessoas que detinham conhecimentos e que, no entanto, alimentaram por anos a ideia da manutenção do corpo (ou corpo/máquina). E no caso de uma entidade brasileira - com sua cultura e seus vícios - o tratamento de um deficiente rico se diferencia do deficiente pobre. Temos depoimentos - meu, da minha noiva e de muitos amigos que vivemos na pobreza - em que se houve negligência na hora de se tratar pacientes mais humildes. Ora, em um país que há ainda uma cultura oligárquica de escravatura, não se pode negar que há essa diferença.


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