terça-feira, 5 de julho de 2022

Capacitismo em forma de piada e notícia em forma de medicalismo

 


Em um vídeo onde o humorista Leo Lins fez uma piada sobre crianças com a hidrocefalia e sabemos, muito bem, que é uma critica a seca do nordeste que ninguém resolve. Apesar disso, esse tipo de piada é sem graça e não me fez rir – eu já ri de piadas de cadeirantes – porque ela foi mal construída e tem um viés de bullying. O SBT (Sistema Brasileiro de Televisão), mandou o comediante embora por conta que na mesma piada, Leo Lins disse o nome do Teleton, que é um dos programas que gera doações para a entidade (não instituição que é uma outra coisa) AACD (Associação a Assistência à Criança Deficiente).

Jerry Lewis – humorista norte-americana – teve sete filhos e um deles tinha deficiência. Em 2009, ganhou o Prêmio Jean Hersholt, o Oscar Humanitário, por ter ajudado a criar uma Associação de Distrofia Muscular, no inicio dos anos 50, e por dar a continuação do seu trabalho humanitário. Lewis foi presidente nacional a partir de 1952 e por essas iniciativas, foi indicado para receber o Prêmio Nobel da Paz. Lewis ainda criou o Teleton em 1966 nos Estado Unidos, realizado em mais de 20 países da Europa, América do Norte e América do Sul, atualmente. Na América Latina possui uma organização dos países que realizam o Teleton, a Organização Internacional dos Teletons (Oritel). O objetivo da Oritel é fornecer a troca de conhecimento entre os países e instituições, além de possuidor uma melhor integração entre aqueles que visam uma sociedade mais justa e produtiva para as pessoas com deficiência de todo mundo.

Isso mostra que a questão da deficiência já estava sendo debatida já na década de 50 lá fora, mesmo que demorou muito para essas nações serem acessíveis. Até os anos 80 – isso está no documentário Crip Camp – haviam leis, por exemplo, que restaurantes norte-americanos poderiam proibir pessoas com paralisia cerebral (em alguns casos, não tem controle na saliva e babam) a ficarem nas mesas e até hoje, familiares podem castrar mulheres com deficiência na sua família. O capacitismo começou a ser discutido graças ao nazismo e graça a teoria eugenista, dizendo que se poderia produzir humanos perfeitos e com saúde forte e saudável. A ideia do eugenismo – que contêm em todas as nações e em todas as ideologias políticas e religiosas – ainda tem seus componentes sutis em teorias do Transhumanismo e a ideia da liberdade do aborto de bebes que no diagnostico, demonstram ter tendencias a terem síndrome de Down. Ou, como eu disse antes, operar as mulheres com deficiência para não terem filhos.

A piada do Leo Lins não teve graça, mas, o capacitismo está além de uma simples piada e de um simples debate. O Teleton como formador de debates sobre deficiência, está sendo usado só – no Brasil – para arrecadar fundos para uma entidade, uma instituição que no passado, deixava os funcionários fazerem bullying e nada acontecia. Por que o Teleton não é usado como foi na sua origem? Por que não fazem arrecadação de outras entidades ligadas a deficiência? A meu ver, o debate não pode ser focado em uma só questão e entre muitas – por temos uma cultura positivista que só o especialista pode responder por uma coisa – o medicalismo, tão enraizado dentro da cultura brasileira e não deixa nós fazemos nossas escolhas e vivemos nossas vidas.

Ao relatar a demissão do humorista pelo SBT, o site CatracaLivre disse:

 

“Lins começa falando sobre o Teleton, que faz a arrecadação de dinheiro para ajudar crianças com problema de saúde, e depois menciona a história de um garoto do Ceará”

 

 

Veja, a questão está na frase “crianças com problema de saúde”. Primeiro é tratar a deficiência como um “problema”, que quem nasceu nas periferias sabe, muitos dizem que “o filho de fulano tem problema”. Existem definições para problema: uma é o senso comum que diz que um problema é uma dificuldade sem solução, na matemática que é um exercício mental para te ensinar a resolução do mesmo problema e a filosófica, que é um fato que pode ter uma solução com várias variáveis. Quando o jornalista do Catraca Livre diz “crianças com problemas de saúde”, ele ou ela ou elxs, é do senso comum. Mas, segundo a própria associação, eles tratam “crianças deficientes”. Ou seja, as crianças não têm “problema” nenhum e sim, deficiência. A hidrocefalia é uma deficiência que pode ser controlada e tratada como todas as deficiências e isso não quer dizer um “problema de saúde”. Mas o porquê o jornalista disse isso?

No Brasil, por muito tempo, houve uma cultura do medicalismo onde as pessoas com deficiência só podiam fazer as coisas se o médico deixasse ou qualquer especialista que achasse certo. Quantos pacientes que a própria associação cuidava morando lá, por causa da pobreza extrema não podia cuidar do filho com deficiência? Conheci um menino – que tinha a mesma deficiência como eu, paralisia cerebral – que foi encontrado em uma casa (os pais eram caseiros de uma fazenda) que foi largado e cheio de bichos que foi deixado em uma instituição. A pobreza extrema e a falta de educação – como formas explicitas para dominar a massa – colaboraram e muito para a visão da deficiência, ora como um castigo (mesmo no espiritismo que somos taxados como suicidas), ora como pessoas doentes que não podem fazer e nem construir uma vida sozinhos. O gozado disso tudo, que famílias de pessoa com Síndrome de Down são mais flexíveis do que famílias de pessoas com deficiência física, que poderemos investigar o porquê e escrever um outro texto.

Ora, a piada do Leo Lins tem raízes muito solidas do capacitismo enraizado dentro da própria cultura humana. Mas, ele é apenas um bufão, um bobo da corte, existem pessoas com deficiência que são maltratadas, assediadas, sofrem capacitismo online ou não. Será mesmo que a humanidade quer evoluir, ou ela quer mostrar uma questão da demagogia?


Amauri Nolasco Sanches Júnior – 46 anos, filósofo (bacharelado), técnico de informática e publicitário e escritor do blog Filosofia sobre rodas

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