<<Todo conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não teria sentido, e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida de sua solução”>> – Deleuze & Guattari, O que é a Filosofia? p. 25
Eu não gosto de tratar as coisas de forma “largada” e nem
sem analisar o conceito das coisas que chamamos de realidade. Porque, eu
desconfio em todo discurso que começa do meio e não um estudo sistemático sobre
o tema, que não é um simples grito ou uma simples campanha de conscientização.
Mesmo o porquê, conscientização se tem que fazer no começo de alguma lei,
depois de uns 20 ou mais, já é uma questão moral. Ou seja, o que se chama de “vergonha na cara”.
Mas, isso é uma deficiência – sem trocadilho – da nossa cultura que tendem
misturar conceitos e confundir opinião com falta de educação, porque a lei de
cotas das pessoas com deficiência, não é uma “vontade” de contratar ou não, em
tese, é uma lei e como lei deveria ser cumprida.
O que as pessoas não começaram é definir qual é o conceito
de deficiência e o porquê essa deficiência é tida como uma “doença”. Mas, o que
seria uma deficiência? o conceito de deficiência ou um ser deficiente – coisas
ou culturas etc. – não é um conceito novo, nem tão pouco tem a ver com o
modernismo. Vamos dizer, que o humanismo jogou um verniz na questão. Mas, como
os loucos – Foucault mostra isso na História da Loucura – fomos trancados e
jogados em clínicas ou casas de repouso como se quisessem esconder os corpos
que não eram considerados “perfeitos”. Os loucos porque se considerava que eles
não tinham almas e não tinham uma harmonia dentro dos seus corpos, do mesmo
modo, pessoas com deficiência não tinham corpos harmoniosos. Era uma discussão
teológica estética, pois, se Deus era perfeito e somos imagem e semelhança
dele, de onde vinha pessoas como estas? Graças a leitura socrática-platônica –
que começou com os romanos – entre a harmonia entre o corpo e a alma e com o
cartesianismo, mecanizando esses corpos, se começou a trancar e esconder.
Ainda não se respondeu à pergunta: “o que é a deficiência?”,
que tem a ver com o conceito de perfeição. Quando você coloca “o que é”, você
quer definir algo em algum lugar e se tem um lugar para ficar, é porque aquilo
tem importância. A distância entre ser deficiente e a deficiência é a definição
que se dará a ela – como uma negação da eficiência do corpo debilitado – como um
corpo desarmonioso e que não era saudável. Ora, ainda tem a visão – com o
cadeirante – uma visão limitante e o objeto <<cadeira de rodas>> fica
como um instrumento de uma certa “redenção” (uma iluminação através do
sofrimento). Sofredores eternos. Sofredores do pecado original. Corpos que
mesmo com facilidades tecnológicas, não se pode esperar uma vida como dos
outros.
1 – O capacitismo e a humanização
A meu ver, existem dois conceitos de capacitismo. O
capacitismo consciente, que coloca o outro como incapaz daquilo que os outros
fazem. E tem o inconsciente – que são conceitos engendrados dentro da cultura –
que remontam um conceito cristão de piedade. Mas, que se conflitam, pois, lá
fora, autistas, por exemplo, dirigem ônibus e trabalham no transporte público
(foi o que vi em um documentário). E aqui mesmo, há um paradoxo bastante interessante
familiar, que as preocupações são muito mais assíduas com pessoas que tem
deficiência física do que, por exemplo, pessoas com síndrome de down. Por que
será que isso pode acontecer?
Um dos motivos pode ser os centros de reabilitação de deficientes
mentais como as APAEs fazerem um trabalho bom, e os centros de reabilitação de
deficientes físicos não fazerem esse trabalho psicológico. As famílias aprendem
a cuidar sozinhas e sem nenhum auxílio dentro dessa categoria que, sem dúvida
nenhuma, começa quando o médico em um tom de velório, diz que o filho tem uma
deficiência e essa deficiência poderá fazer ele depender da família a vida
inteira. Mas – umas das mais enraizadas dentro do nosso país – há um conceito
de familialismo, que, segundo a Wikipédia, é uma ideologia que prioriza a
família. isso poderia ser errado? Depende o quanto o grau de personalismo isso
pode fazer dentro do psicológico do filho. Claro, podemos até dizer que o
núcleo familiar sempre existiu como clã e depois, com o aparecimento da
agricultura, como uma certeza de que o filho e o homem fossem inclusivos.
A questão foi os latinos confundirem o ETHOS grego com o
costume – com a individualidade como conceito jurídico – porque o ETHOS era o espírito
social por excelência e a unidade de um povo como os gregos que tinham comunidade polis (cidades-estados) sem uma centralização. A estrutura familistica
se transforma em uma unidade dentro de uma moral individualizada, e que ganha
força, quando há a cultura medievalista que coloca o indivíduo responsável pela
vida e a morte desse núcleo. Mas, há um grande problema central, isso
transforma em uma unidade narcisista e egóica. Na essência, familismo se
relaciona muito mais com valores familiares. A que preço?
O primeiro ato capacitista foi um chefe do clã decidir que
aquele membro bebê – o humano-criança – não poderia ser capaz de ser um caçador
ou acompanhar o clã. O problema é que se passou milhões de anos desde esse ato
e vários conceitos mudaram ao longo dos tempos e hoje – no pós-modernismo – o
conceito de incapaz vem mudando, mesmo o porquê, a incapacidade vem de outros
fatores também. Daí a humanização da deficiência é bastante importante, mas, há
um entrave muito grande entre a humanização e o conceito da deficiência como
doença. Como um sofrimento que não pode durar.
2 – Linguagem biomédica e a dúvida cartesiana
A linguagem biomédica colocou a deficiência na ciência médica
e tirou ela das religiões e entendimentos metafísicos. Se um colocava a deficiência
como um “castigo” de Deus ou dos deuses – em alguns casos até obra do demônio –
o outro coloca a deficiência como uma “peça” em uma máquina e que não há substituição.
Nos dois casos, há uma desumanização do corpo e uma binaridade, ora com o corpo
e a alma, ora com o saudável com o doente. E nos dois casos tem uma tendencia
de esconder o corpo diferente dentro de uma colocação da marginalidade. Você só
é feliz perfeito. Mas, o que seria uma perfeição?
Na antiguidade dentro do sistema filosófico grego, existia
um filósofo (Heráclito) que dizia que tudo mudava (fluir), outro (Parmênides)
que dizia que o ser não muda. Houve um grande debate e Platão disse – tentando fazer
uma síntese – que tudo era copia e que o original estava no mundo das ideias ou
formas. Ou seja, enquanto há uma forma original dentro do transcendente e
aquilo que não muda, há a cópia imanente que vai mudando o tempo todo e que
transforma. A questão platônica foi adotada pela igreja católica – e por outras
religiões como o kadercismo – entre o espírito como essência da forma e o corpo
vai modificando conforma o conhecimento. Poderíamos começar com uma simples
pergunta: e as pessoas com deficiência,
loucos e aqueles que fugiam do critério universal da perfeição? O kadercismo traz
uma explicação interessante – tirando a ideia do pecado e do pecador – que nem
sempre o corpo diferente carrega um espírito (essência) maléfica ou não evoluída,
e sim, é uma experiencia. Mas, a crença de pecado ainda existe no pensamento cármico,
como uma repetição para “aprender”.
Por isso há igrejas cheias de pessoas com deficiência cadeirante
que querem andar – nunca tive vontade de andar e ficar em pé nem
artificialmente – porque a ideia da perfeição está engendrada como algo
universal, mas que só está no critério humano. Uma zebra é menos zebra por
causa de uma lista a menos? Um leão deixa de ser leão por causa de uma juba
torta ou menos volumosa? Um elefante deixa de ser elefante por causa de uma
presa menor? A questão que a ideia da cópia e do original não é “descartável”,
mas traz uma outra questão muito mais perigosa: a não aceitação de si esperando
um outro que nunca vai vir e essa é a imanência da deficiência. Existem seres humanos
com deficiência e que querem ter uma vida comum e a sociedade, nos joga como
seres que devem ser escondidos e esquecidos em algum canto.
Veja esse video:
Amauri Nolasco Sanches Júnior – 46 anos, filósofo (bacharelado), técnico de informática e publicitário e escritor do blog Filosofia sobre rodas
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