sábado, 23 de julho de 2022

Tratado anticapacitista

  



<<Todo conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não teria sentido, e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida de sua solução”>> – Deleuze & Guattari, O que é a Filosofia? p. 25

 

Eu não gosto de tratar as coisas de forma “largada” e nem sem analisar o conceito das coisas que chamamos de realidade. Porque, eu desconfio em todo discurso que começa do meio e não um estudo sistemático sobre o tema, que não é um simples grito ou uma simples campanha de conscientização. Mesmo o porquê, conscientização se tem que fazer no começo de alguma lei, depois de uns 20 ou mais, já é uma questão moral.  Ou seja, o que se chama de “vergonha na cara”. Mas, isso é uma deficiência – sem trocadilho – da nossa cultura que tendem misturar conceitos e confundir opinião com falta de educação, porque a lei de cotas das pessoas com deficiência, não é uma “vontade” de contratar ou não, em tese, é uma lei e como lei deveria ser cumprida.

O que as pessoas não começaram é definir qual é o conceito de deficiência e o porquê essa deficiência é tida como uma “doença”. Mas, o que seria uma deficiência? o conceito de deficiência ou um ser deficiente – coisas ou culturas etc. – não é um conceito novo, nem tão pouco tem a ver com o modernismo. Vamos dizer, que o humanismo jogou um verniz na questão. Mas, como os loucos – Foucault mostra isso na História da Loucura – fomos trancados e jogados em clínicas ou casas de repouso como se quisessem esconder os corpos que não eram considerados “perfeitos”. Os loucos porque se considerava que eles não tinham almas e não tinham uma harmonia dentro dos seus corpos, do mesmo modo, pessoas com deficiência não tinham corpos harmoniosos. Era uma discussão teológica estética, pois, se Deus era perfeito e somos imagem e semelhança dele, de onde vinha pessoas como estas? Graças a leitura socrática-platônica – que começou com os romanos – entre a harmonia entre o corpo e a alma e com o cartesianismo, mecanizando esses corpos, se começou a trancar e esconder.

Ainda não se respondeu à pergunta: “o que é a deficiência?”, que tem a ver com o conceito de perfeição. Quando você coloca “o que é”, você quer definir algo em algum lugar e se tem um lugar para ficar, é porque aquilo tem importância. A distância entre ser deficiente e a deficiência é a definição que se dará a ela – como uma negação da eficiência do corpo debilitado – como um corpo desarmonioso e que não era saudável. Ora, ainda tem a visão – com o cadeirante – uma visão limitante e o objeto <<cadeira de rodas>> fica como um instrumento de uma certa “redenção” (uma iluminação através do sofrimento). Sofredores eternos. Sofredores do pecado original. Corpos que mesmo com facilidades tecnológicas, não se pode esperar uma vida como dos outros.

 

 

1 – O capacitismo e a humanização

 

 

A meu ver, existem dois conceitos de capacitismo. O capacitismo consciente, que coloca o outro como incapaz daquilo que os outros fazem. E tem o inconsciente – que são conceitos engendrados dentro da cultura – que remontam um conceito cristão de piedade. Mas, que se conflitam, pois, lá fora, autistas, por exemplo, dirigem ônibus e trabalham no transporte público (foi o que vi em um documentário). E aqui mesmo, há um paradoxo bastante interessante familiar, que as preocupações são muito mais assíduas com pessoas que tem deficiência física do que, por exemplo, pessoas com síndrome de down. Por que será que isso pode acontecer?

Um dos motivos pode ser os centros de reabilitação de deficientes mentais como as APAEs fazerem um trabalho bom, e os centros de reabilitação de deficientes físicos não fazerem esse trabalho psicológico. As famílias aprendem a cuidar sozinhas e sem nenhum auxílio dentro dessa categoria que, sem dúvida nenhuma, começa quando o médico em um tom de velório, diz que o filho tem uma deficiência e essa deficiência poderá fazer ele depender da família a vida inteira. Mas – umas das mais enraizadas dentro do nosso país – há um conceito de familialismo, que, segundo a Wikipédia, é uma ideologia que prioriza a família. isso poderia ser errado? Depende o quanto o grau de personalismo isso pode fazer dentro do psicológico do filho. Claro, podemos até dizer que o núcleo familiar sempre existiu como clã e depois, com o aparecimento da agricultura, como uma certeza de que o filho e o homem fossem inclusivos.

A questão foi os latinos confundirem o ETHOS grego com o costume – com a individualidade como conceito jurídico – porque o ETHOS era o espírito social por excelência e a unidade de um povo como os gregos que tinham comunidade polis (cidades-estados) sem uma centralização. A estrutura familistica se transforma em uma unidade dentro de uma moral individualizada, e que ganha força, quando há a cultura medievalista que coloca o indivíduo responsável pela vida e a morte desse núcleo. Mas, há um grande problema central, isso transforma em uma unidade narcisista e egóica. Na essência, familismo se relaciona muito mais com valores familiares. A que preço?

O primeiro ato capacitista foi um chefe do clã decidir que aquele membro bebê – o humano-criança – não poderia ser capaz de ser um caçador ou acompanhar o clã. O problema é que se passou milhões de anos desde esse ato e vários conceitos mudaram ao longo dos tempos e hoje – no pós-modernismo – o conceito de incapaz vem mudando, mesmo o porquê, a incapacidade vem de outros fatores também. Daí a humanização da deficiência é bastante importante, mas, há um entrave muito grande entre a humanização e o conceito da deficiência como doença. Como um sofrimento que não pode durar.

 

2 – Linguagem biomédica e a dúvida cartesiana

 

A linguagem biomédica colocou a deficiência na ciência médica e tirou ela das religiões e entendimentos metafísicos. Se um colocava a deficiência como um “castigo” de Deus ou dos deuses – em alguns casos até obra do demônio – o outro coloca a deficiência como uma “peça” em uma máquina e que não há substituição. Nos dois casos, há uma desumanização do corpo e uma binaridade, ora com o corpo e a alma, ora com o saudável com o doente. E nos dois casos tem uma tendencia de esconder o corpo diferente dentro de uma colocação da marginalidade. Você só é feliz perfeito. Mas, o que seria uma perfeição?

Na antiguidade dentro do sistema filosófico grego, existia um filósofo (Heráclito) que dizia que tudo mudava (fluir), outro (Parmênides) que dizia que o ser não muda. Houve um grande debate e Platão disse – tentando fazer uma síntese – que tudo era copia e que o original estava no mundo das ideias ou formas. Ou seja, enquanto há uma forma original dentro do transcendente e aquilo que não muda, há a cópia imanente que vai mudando o tempo todo e que transforma. A questão platônica foi adotada pela igreja católica – e por outras religiões como o kadercismo – entre o espírito como essência da forma e o corpo vai modificando conforma o conhecimento. Poderíamos começar com uma simples pergunta:  e as pessoas com deficiência, loucos e aqueles que fugiam do critério universal da perfeição? O kadercismo traz uma explicação interessante – tirando a ideia do pecado e do pecador – que nem sempre o corpo diferente carrega um espírito (essência) maléfica ou não evoluída, e sim, é uma experiencia. Mas, a crença de pecado ainda existe no pensamento cármico, como uma repetição para “aprender”.

Por isso há igrejas cheias de pessoas com deficiência cadeirante que querem andar – nunca tive vontade de andar e ficar em pé nem artificialmente – porque a ideia da perfeição está engendrada como algo universal, mas que só está no critério humano. Uma zebra é menos zebra por causa de uma lista a menos? Um leão deixa de ser leão por causa de uma juba torta ou menos volumosa? Um elefante deixa de ser elefante por causa de uma presa menor? A questão que a ideia da cópia e do original não é “descartável”, mas traz uma outra questão muito mais perigosa: a não aceitação de si esperando um outro que nunca vai vir e essa é a imanência da deficiência. Existem seres humanos com deficiência e que querem ter uma vida comum e a sociedade, nos joga como seres que devem ser escondidos e esquecidos em algum canto. 


Veja esse video:





Amauri Nolasco Sanches Júnior – 46 anos, filósofo (bacharelado), técnico de informática e publicitário e escritor do blog Filosofia sobre rodas

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